O escritor

Um imenso copo d’água, na frente de olhos enormes, conhecidos e desfocados. Demorei um pouco até compreender o que estava acontecendo. Não sabia se dormia, se sonhava ou se alguém me chamava. “Ei, o que houve?”, indagou. Tinha as roupas ensopadas e uma ansiedade que fez o coração disparar. “Foi um pesadelo, acho”.

Era a dona Dita, minha avó. Aparecia em cima de um cavalo forte e escovado, com vestido de chita cruzado por cinturões carregados de munição de grosso calibre. Na cintura direita, um Colt Cavalinho, cabo branco de osso. Na esquerda, uma Luger 9mm, além de uma afiada peixeira de palmo e meio de comprimento. Nas costas, o rifle de combate. No borná pendurado, produtos de beleza e uma botelha com cachaça. Trazia ainda, em bolsas de couro, apetrechos para costura. Duas tranças apertadas e bem feitas, desciam-lhe, roçando as orelhas.

Ela estava, ora sozinha, ora acompanhada. Diversos cavalos e cavaleiros, com vestimentas e armamento parecidos, figuravam na retaguarda e sumiam. Quando sumiam, restava apenas um cavalo e um cavalheiro mais junto da amada bela; vaidoso, de chapéu de palha, só fazia era cuidar dela.

As imagens do fundo se moviam e se alteravam como se passadas em um telão de cinema. Foquei em uma cena que mostrava uma casa em chamas e um furdunço danado. Afastando um pouco, era possível notar duas meninas que disparavam para longe do fogaréu. Uma delas se perdia na mata. A outra, sozinha, sentou-se junto ao pé de uma oiticica, aos prantos, com as pequenas mãos cravadas na terra. 

O choro se apressava em conter-se. A menina franzina e birrenta, começava então a desenhar coisas incompreensíveis no chão. Diante da tragédia, ela arranjava um tempo para brincar, até que se lembrava do acontecido e voltava a chorar. “É Mariinha, tua mãe, visse, minino? A que se perdeu é tua tia. Foi um cão dos infernos até achar essas meninas naquele mei de mato que só Deus. A valença foi um empregado da fazenda e os vizinhos que escarafuncharam tudo. De vez em quando, teu avô, ⏤ e olhava com ternura para o homem de chapéu ao seu lado ⏤, dava um pipoco pra riba pra mode assustar as onças. Perdimos tudo e descorçoamos. Fumu pra Sum Paulo.”

Havia também uma mulher arrastada pelos cabelos e que, apesar do jeito esquisito, aceitava o seu destino, mansamente. Ela fora retirada da sua tribo e levada para outra aldeia longe onde passaria a viver com o homem que a arrastava até o fim dos seus dias. “Essa era minha mãe, tua bisavó. Com ela aprendi tudo o que sei de rezas. Desde as que curam até as que abrem e fecham o corpo contra qualquer mal, seja de punhal assassino, seja de bala perdida ou endereçada”. 

“Mas, apois, vamu acabar com essa prosa arrastada. Trago aqui um escapulário que passa de mãe para filha. Dentro dele, apertadinho, em papel feito sanfona, a oração, Salve Rainha, que protege essa família desde há muito tempo. Mariinha tem o seu, que não pode ser dado, vendido ou rebolar no mato. Em todas as tuas arengas, ela valeu-se da santinha, teve o joelho sangrado por tanto amor que lhe tem. Ela deposita em tu toda a esperança. Te ama como a ninguém nessa vida. Já lhe perdoou os pecados. Perdoa, tu, os dela também. Toma, é teu”.

“Vou chegando. Antes, deixo uns versinhos. Assunta bem, meu netinho, filho de Marinha:

Atentai ó meu netinho

nos conselho que lá vai:

não se zangue com Maria,

compreenda o teu pai.

O teu pai foi cantador,

o mais branco que se viu,

empunhava a viola

deixando o mundo no cio.

Violeiro da porteira,

bem conhecido ficou,

no repique da viola

tua mãe arrebatou.

O café que era a mina,

a crise o consumiu:

“vamo embora, meu marido”,

Mariinha decidiu.

Foi embora sem um nada

com os quatro filhos seus,

arregaçou as mangas

na fé em Jesus e Deus.

Se instalou naquele sítio,

pra favela não iria,

enfrentou as tempestades,

é porreta essa Maria.

Teve altos, teve baixos,

mas a vitória alcançou,

a maior Graça da vida,

vê-lo um dia, escritor.

(Texto publicado na primeira edição, ano 2, da Revista Travessias Literárias, disponível em https://www.facebook.com/travessiasliterarias)

O escrevinhador

Um imenso copo d’água, na frente de olhos enormes, conhecidos e desfocados. Demorei um pouco até compreender o que estava acontecendo. Não sabia se dormia, se sonhava ou se alguém me chamava. “Ei, o que houve?”, disse Aurora. Não sabia ainda a resposta. Tinha as roupas ensopadas e uma ansiedade que fez a pressão arterial disparar. “Foi um pesadelo, acho”, disse, ao mesmo tempo que aceitava a água e me levantava. Desci as escadas e fui me refrescar no sofá.

Era a minha avó a visitar-me em sonho. Aparecia em cima de um cavalo forte e escovado, com vestido de chita cruzado por cinturões carregados de bala. Na cintura direita, um Colt Cavalinho calibre 38. Na esquerda, uma Luger 9mm, além de uma afiada peixeira de palmo e meio de comprimento. Nas costas, o rifle de combate. No “borná” pendurado, produtos de beleza e uma garrafa de cachaça. Trazia ainda, em bolsas de couro, apetrechos para costura. Duas tranças apertadas e bem feitas, desciam-lhe, roçando as orelhas.

Ela estava, ora sozinha, ora acompanhada. Diversos cavalos e cavaleiros, com vestimentas e armamento parecidos, figuravam na retaguarda e sumiam. Quando sumiam, restava apenas um cavalo e um cavalheiro mais junto dela; vaidoso, de chapéu de palha, só fazia era cuidar dela.

As imagens do fundo se moviam e se alteravam como se passadas em um telão de cinema. Foquei em uma cena que mostrava uma casa pegando fogo e um furdunço danado. Afastando um pouco, era possível notar duas meninas que disparavam para longe do fogaréu. Uma delas se perdia na mata. A outra, sozinha, sentava-se em um tronco de árvore aos prantos, com as pequenas mãos cravadas na terra. O choro se apressava em acabar e começava daí a desenhar coisas incompreensíveis no chão. Diante da tragédia ela tinha um momento precioso para brincar e ser feliz, até que se lembrava do acontecido e voltava a chorar. “É Mariinha, tua mãe, viste menino? A que se perdeu é tua tia. Demoramos cinco dias para encontrá-la naquele mei de mato que só Deus. A valença foi um empregado da fazenda e os vizinhos todos que esquadrinharam o matagal que nem era tão alto. De vez em quando, meu marido, teu avô, ⏤e olhava com carinho para o homem de chapéu ao seu lado ⏤, dava um pipoco pra cima para assustar as onças. Perdimos tudo e descorçoamos. Resolvemos ir pra Sum Paulo.”

A próxima sequência de imagem era de uma mulher arrastada pelo cabelo e que, apesar do jeito esquisito, aceitava o seu destino. Ela fora retirada da sua tribo e levada para outra aldeia distante onde passaria a viver com o seu novo marido até os fins dos seus dias. “Essa era minha mãe, tua bisavó. Com ela aprendi tudo o que sei de rezas. Desde as que curam até as que abrem e fecham o corpo contra qualquer mal, seja de punhal assassino, seja de bala perdida ou endereçada”. 

“Mas, apois, vamu acabar com a prosa e ligeiro dizer a que vim”, continuou. “Trago aqui um escapulário que passa de mãe para filha. Dentro dele, apertadinho, em papel feito sanfona, A Oração, Salve Rainha, que protege essa família desde tempos imemoriais. Mariinha tem o seu, que não pode ser doado, vendido ou jogado fora. Em todas as tuas quedas, ela valeu-se da santinha, teve o joelho sangrado por tanto amor que lhe tem. Ela deposita em tu toda a esperança. Te ama como a ninguém nessa vida. Já lhe perdoou os pecados. Perdoa, tu, os dela também. Quero pedir-lhe um grande favor. Vai, logo, menino, escreve tudo. Seja o nosso escrevinhador.”

“Se me permite, enquanto me arretiro, deixo uns versos pra tu. Guarde em teu coração. Deus te abençõe, meu netinho, filho de Mariinha, minha menina franzina, coração de leoa, fonte de fortaleza e orgulho para todos nós:

Atentai ó meu netinho

nos conselho que lá vai

não se zangue com Maria,

compreenda o teu pai.

O teu pai foi cantador,

o mais branco que se viu

empunhava a viola

deixando o mundo no cio.

Violeiro da porteira,

bem conhecido ficou

no repique da viola

tua mãe arrebatou.

O café que era a mina

a crise o consumiu

vamo embora, meu marido

Mariinha decidiu.

Foi embora sem um nada

com os quatro filhos seus

arregaçou as mangas

na fé em Jesus e Deus.

Se instalou naquele sítio

pra favela não iria

enfrentou as tempestades

é porreta essa Maria.

Teve altos, teve baixos

mas a vitória alcançou

a maior Graça da vida,

vê-lo um dia, escritor.

imagem: Benjamin Abrahão Botto

Um sonho

Há tempos um sonho recorrente frequenta minhas noites. Uma Rural Willys verde totalmente coberta com papéis colados esvoaçantes parada em frente à minha casa. Não sei se é fruto da imaginação ou de lembranças adormecidas.

Minha mãe, que odeia tudo que vem de Freud, diz que é loucura minha. Que nunca existiu um veículo como aparece nos meus sonhos: “Melhor ligar para sua madrinha, pedir que faça umas orações. Sabia que quando você era criança você via um menino, apontava para ele, mas ninguém via? Deus me livre! Me dá até um calafrio de lembrar. Você só parou de ver essa assombração depois de uma novena. Você tinha uns três anos nessa época”. 

Quando somos crianças não lidamos muito bem com mentiras, mas no sonho, recebia a incumbência de avisar o homem do carro que meu pai não estava. Insistente, ele queria a todo custo que meu pai o acompanhasse a um comício e levasse consigo a sua viola caipira.

Dominava a política local uma família tradicional ligada aos grandes proprietários de terra da região, produtores de café.

Meu pai aprendeu a tocar viola caipira sozinho ouvindo as duplas sertanejas famosas nas emissoras de rádio espalhadas pelo país. Tião Carreiro e Pardinho era a predileta. Chegou a ser apelidado de menino da porteira porque dava um jeito de se livrar logo do trabalho nas lavouras de café da região de Campos Novos, para ficar cantando com um arremedo de viola.

No sonho, meu pai e um amigo dele com os pés nas cadeiras da sala ensaiavam horas a fio, cada um com um instrumento. O parceiro do meu pai, era um ser mirrado, esguio, mas de uma voz que parecia um trovão. Eram a imitação perfeita dos sertanejos preferidos. Eu ficava o tempo todo acompanhando a cantoria e de vez em quando arriscava cantar junto partes das músicas que ouvia inúmeras vezes.

O sonho do meu pai era cantar na Rádio Record, no programa do Zé Bettio, gravar um disco, ser famoso. Mas não pela fama e pelo dinheiro; sua paixão era a música sertaneja. O sonho da minha mãe era livrar-se do sonho do meu pai, fazê-lo voltar-se à família, educar os filhos, oferecer-lhes a oportunidade que nunca tiveram.

A crise do café e as oportunidades de trabalho nos grandes centros no Brasil do milagre econômico e da ditadura militar, forçaram o casal a tomar a decisão que marcaria para sempre a vida da família. 

Éramos seis quando chegamos à estação ferroviária de Caminhos dos Goiases. A esperança, enorme. Os sonhos distintos. Os desafios, quase intransponíveis.

imagem: Flickr

A escola

Ensopado de água benta despejada das folhas de arruda da minha avó, eu pensava, incomodado, de onde ela tirava essas ideias e doenças que eu não tinha. Quando não era mau-olhado, era quebranto ou possessão. Está certo que bem pequeno conheci um amigo; conversava com ele, até brincava com ele à distância. Mas, estranhamente, só eu o via. Meus pais tinham certeza que era “coisa do demo”. Até novena fizeram.

Morávamos na chácara Santa Teresinha. Aos domingos, era sagrado, saíamos da chácara rumo à casa da minha avó que morava há uns dois quilômetros longe.

O caminho para lá, passava, necessariamente, pela casa do proprietário do pequeno sítio. O velho era um homem ruim, que me odiava. Dizia sempre aos meus pais que o meu destino era o de ser bandido porque eu era muito vagabundo, que ainda me veria preso ou morto. Tais ofensas chegavam aos ouvidos de minha mãe como um alerta e sua reação me doía no corpo e na alma. Que ódio desse velho! Meu desejo era que ele explodisse de raiva. E não media esforços para irritá-lo profundamente.

Da janela da cozinha de casa conseguia avistar o pomar de laranjas carregado bem à frente. Do lado esquerdo do pomar havia um grande barracão abandonado e um terreiro enorme onde corríamos e brincávamos. A pior coisa que eu poderia fazer para irritar o velho era apanhar frutas ainda verdes. E era exatamente isso que eu fazia, repetidas vezes.

Entre o pomar e a nossa casa, havia uma construção que chamávamos de “tanque”, onde funcionava uma lavanderia e um banho públicos. É que o homem tinha dezenas de casas de aluguel espalhadas pela chácara. Apenas algumas delas eram equipadas com banheiros particulares ⏤e, obviamente, eram as de aluguéis mais caros e, na medida do possível, reservadas para as famílias com crianças.

O “tanque” era o local onde várias mulheres se reuniam para lavar as roupas e promover intrigas entre vizinhos. Minha mãe as chamava de alcoviteiras. Era uma verdadeira boca maldita. Elas me odiavam, e eu a elas.

Certa vez, cansados das injúrias e calúnias que chegavam em minha casa e que se transformavam em castigos dolorosos, planejamos uma vingança sórdida contra as fofoqueiras. Esperamos que colocassem os lençóis branquinhos no varal para, sorrateiramente, jogar barro em tudo. Que alegria!!

Passávamos o dia todo na casa da minha avó. No final do dia, o retorno apressado tinha como justificativa a volta para a rotina semanal. Mas esse outro dia tinha um sabor diferente. Era o meu primeiro dia de aula.

Olhando pela janela via que ainda estava escuro, mas minha mãe, agitada, me fazia levantar e se preparar para a jornada especial ⏤mais para ela que para mim. Saímos de casa uma hora antes. Era o tempo de chegarmos à escola. O caminho, até certo ponto, era o mesmo para ir para minha avó, com a mesma exuberância, cercado de árvores frutíferas as mais diversas, de areia e pedriscos. Apesar de ter passado por ali muitas vezes, a beleza ao longo do trecho parecia ter ganhado um aspecto renovado, mais colorido, pueril.

⏤Presta atenção no caminho, menino, que amanhã você vem sozinho, advertia minha mãe, em tom grave, me puxando do estado de contemplação.

Vencida a subida, uma trilha à direita, entre eucaliptos, nos levava até perto da escola. Não podia ouvir um estalar de folha ou graveto que meu coração galopava. Além de tudo, o caminho era repleto de cobras, diziam. Tinha medo do natural e do sobrenatural ⏤e já começava a sentir medo de ir para a escola; mais da travessia do que da própria escola.

Ah, mas eu gostei daquilo tudo. O prédio era imponente, os banheiros enormes e tínhamos comida. As professoras eram rígidas, bem arrumadas, distintas, com seus colares, brincos, batons e vestidos. Os horários tinham que ser cumpridos à risca. A cada sinal estridente, tínhamos que sair correndo para formação de fila, que precisava ser reta. Para isso, estendíamos as mãos sobre o ombro do colega da frente. A fila era por ordem de altura. Meninos e meninas em filas separadas, seguíamos em marcha para as salas de aula. Aprendíamos a escovar os dentes e a cantar os principais hinos do Brasil. Desde cedo, me mostrava afinado e as professoras notavam e gostavam disso. Nosso livro principal se chamava Caminho Suave.

Na sala de aula, o silêncio era sepulcral. Apenas a professora tinha a fala e o direito de concedê-la a quem quer que apontasse o dedo. Havia uma espécie de acordo. Os direitos pertenciam aos professores, direção e funcionários; já os deveres, todos, eram nossos. 

Nunca na vida tinha visto tanta gente e isso me excitava. Logo conheci os menos tímidos e dispostos a fazer amizade. Um menino, no entanto, chamava a atenção. Tinha o cabelo liso, escorrido, preto, parecia ser o mais branco da sala, mas não era. Sua brancura é que era diferente, mais pálida talvez. Era também o mais bem vestido. Suas roupas eram impecáveis, alvas, com cheiro agradável e cheias de vincos. Era o único da sala a exibir uma lapiseira, que ficava limpando com um lenço, em movimento preciso e cuidadoso. Seu nome não digo, mas algo importante sobre ele acabei descobrindo. Era filho da professora e neto do velho ranzinza que eu tanto odiava.

Apesar da descoberta e o medo de que o ódio do velho se transferisse para a professora e ao menino que acabara de conhecer, a ligação direta não se concretizou. Ao final, a professora me tratava com muito carinho e me escolhia, sempre que podia, para ser parceiro do seu filho na hora dos trabalhos escolares em dupla.

Em uma aula de geografia, a professora escreveu na lousa, bem grande: “Não somos filhos de chocadeira”. O exercício era falar sobre os ancestrais, identificados, pelo sobrenome. E a própria professora quem começou. Ela dizia que era descendente de lavradores Italianos que chegaram ao Brasil no século 19, no vapor “Sofia”, em busca de trabalho nas lavouras de café, em franca expansão. Se por aqui, as coisas iam bem, na Itália a crise era terrível. Quando veio a grande crise do café no Brasil, os Italianos começaram a comprar sítios e chácaras para fazerem o que sempre souberam: plantar e colher. Outros, abriram comércios. Tudo isso foi determinante para um importante dado estatístico: 70% da população da região eram descendentes de Italianos, concluiu a professora. Em seguida, foi à lousa e escrevera o seu sobrenome: Bosco. E explicou que o significado da palavra era bosque.

A cada apresentação ela colocava o sobrenome na lousa até ficar assim: Bosco, Valle Mello, Noveletto, Raposeiro, Guidotti, Pereira, Biancalana, Aranha, Franceschini, Miranda, Foffano, Teixeira, Fabbri, Leite, Basso, Breda, Marangoni, Duarte, Montanher, Menuzzo, Oliveira, Ravagnani, Cabral, Silva.

Pensei, a partir do exercício, que a produção de café tinha importante ligação entre muitos acontecimentos. Como a professora dissera, os Italianos vieram atrás das promissoras lavouras de café. Quando a crise chegou, eles se viraram e compraram as suas terras. Lá em casa, minha mãe dizia que a crise do café, nos deixou sem trabalho e por isso, viemos para cá, onde a indústria estava em plena expansão. Naquele tempo, você saía de um trabalho de manhã e à tarde já estava em outro.

Chegando em casa, perguntei: “Mãe, o que significa ser filho de chocadeira?” Ela ameaçou me dar uma bronca, mas se conteve e pegou o pequeno dicionário enciclopédico Koogan Larousse, que havia comprado, recentemente, parcelado em dez vezes, e começou a desfolhá-lo. “Aqui nesse livro tem de um tudo, menino. Quer saber sobre a China, Estados Unidos e sobre pessoas famosas? É só procurar aí. Quer ver? Quem foi Lampião. Letra éle. Veja aí. Foi o Rei do Cangaço. Minha mãe, sua avó, conhecia Lampião e até tinha intimidade com ele, sabia? Chamava ele de “cumpadre Virgolino”. Aqui diz também que lampião é um poste de iluminação a gás. “Tá vendo, menino. Nesse livro tem de tudo, não to falando?” Meu pai, ouvindo a conversa, gritou do quarto: “Veja se tem aí Vicente Celestino”. E assim, passamos umas três horas procurando nome de coisas, pessoas e cidades no Koogan Larousse.

imagem: Freepik

Aurora


Uma dor intensa, atordoante; a certeza do desfalecimento iminente. Potente e avassaladora, veio em seguida a sensação desconfortável de pequenez e fragilidade, acompanhada de um deslumbramento, fonte de forças, mas também de esgotamento, em um processo que durou a eternidade de poucos segundos, ao cruzar o olhar com Aurora.

Ela também fixou o olhar ⏤ não ignore o gesto, nem a formosura e encanto que emanava dela. Sentia-me revirado, completamente em desordem, uma formiga arrastada por ventos impetuosos. Meu mundo ruiu, atingido por raios divinos da deusa; não restaram convicções, idiossincrasias, religião, nada.

Os olhos imensos, castanhos, cor de mel, quase pretos, inquietos, pareciam grandes faróis de milha, que cegam se olhado de frente, mas que iluminam, tomados em perspectiva. Eram marotos e esquivos ao mesmo tempo. Essa ambiguidade no olhar não permitia uma avaliação mais acurada. Ela era uma ilha com suas reservas naturais e belezas paradisíacas. 

Nesse dia ela vestia uma saia jeans, na medida, que ia até o joelho e camiseta cinza com detalhes rosa e a frase: “Então me abraça forte e me diz mais uma vez que já estamos distantes de tudo (Legião Urbana)“. Era um convite irrecusável.

Havia um certo descompasso entre o conjunto, que se completava com sandálias de couro, tipo rasteirinha, que deixavam livres os dedos e pés alvos. Aurora acabara de sair da adolescência, como denotavam suas jovens e tímidas espinhas com pontinhos avermelhados imperceptíveis, que despontavam aqui e ali sem muita força, mantendo a suavidade da sua pele rosada e macia. Um brilho leve de batom claro e discreto despontava dos lábios. Brincos, igualmente discretos, reforçavam sua graça e beleza infantojuvenil.

Será que já tinha visto Aurora em algum lugar? Em alguma outra vida, talvez? Como poderia saber, se tudo o que sabia já não me pertencia? Um vazio profundo tomou conta de mim, e aquele vazio era todo dela.

“Vou me casar com você”, foram as únicas palavras que consegui proferir. Ela não disse nada, apenas sorriu.

Apesar da pretensa coragem e flagrante ousadia, passei os dias e semanas seguintes correndo de Aurora, cuidando para mantê-la sempre no radar. Naquele tempo ainda existiam as cartas e foi em uma delas que ela me fez a maior das declarações: “Estou entre porcos e galinhas, cabritos e bois, tudo aqui me entedia. Sinto a tua falta”.

Sei que não era o “Peça-me” de Guiomar, em a Mão e a Luva. Nem tinha a mesma concisão e urgência. E eu também não era Luís Alves. Faltava-me a frieza, a paciência e a confiança exagerada.

Contudo, os raios de sol, prometiam dias felizes e eternos, ainda que as sombras, irmãs das luzes estejam conosco nessa jornada.

imagem: Freepik

O novo pároco

 

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Acaba de chegar o novo pároco. Um ser esguio de feições. Caras e bocas de quem tudo sabe, com um jornal nas mãos, isolado de todos, parece estar sempre à espreita, desconfiado. Quando fala, pisca bastante os olhos, quando escuta, só retém o que lhe interessa.

Ficamos muitos anos dependentes de uma paróquia distante. Formávamos uma grande comunidade unida pela fé e política, pela força do versado e autônomo laicato.

Tudo andava muito bem até a diocese resolver por em prática o Cân. 374 § 1º, segundo o qual, toda diocese ou outra Igreja particular seja dividida em partes distintas ou paróquias e que esta comunidade de fiéis, constituída estavelmente na Igreja particular, e seu cuidado pastoral deve ser confiada ao pároco, sob a auctoritate do bispo diocesano.

E lá estava ele. Pronto para matar a comunidade de cristãos que viviam quase igual às primeiras comunidades lá do tempo de Jesus, com a anuência do senhor bispo, outro matador de comunidades livres e felizes.

A primeira medida do infeliz padre Sicário foi proibir qualquer instrumento musical diferente dos clássicos. Só podia piano ou órgão. Um coral deveria ser treinado com urgência. Todos os líderes foram obrigados a pedir demissão dos seus respectivos cargos voluntários para que Sicário pudesse escolher os seus ministros. Nenhum deles deveria ser cabeça preta. E nas cabeças brancas somente ideias da igreja medieval eram permitidas.

Sicário foi além. Patrocinou intrigas, reacendeu antigos conflitos pessoais. Inventou o rito genuflexório para que beatas e beatos beijassem-lhes as mãos e o anel. Ele se sentia o próprio São Pedro.

Foi uma verdadeira revolução cultural. Outra maior que essa, só a de Mao Tse-Tung.

Tudo organizado e a contento da Santa Igreja, Sicário partiu em busca de um bom rabo de saia, abundante na pastoral da juventude. Comeu quase todas.

Imaculada, porém, saiu incólume. Resistiu bravamente às investidas cada vez mais intensas e enfáticas de Sicário. Como era possível a ela, resistir à sua autoridade divina, pensava o padreco.

Fez que fez que conseguiu ficar sozinho com ela no sacrário. Com palavras doces e valendo-se da devoção de Imaculada forçou-a a vestir um manto azul de Nossa Senhora. Ela realmente ficara linda e sedutora. Imaculada olhou para o espelho. Sicário atrás dela a contemplava excitado. Violentamente, Sicário a abraçou, já com as calças nos pés. O abraço da morte.

Imaculada virou devagar como se aceitasse a sua concupiscência, o beijou e desferiu-lhe um golpe fatal com um punhal que trazia consigo.

O tiro

A noite era fria. O ônibus, o último. A maioria das pessoas se reconheciam. Umas vinham do trabalho, outras da escola ou da faculdade. Havia um engravatado com uma bíblia, cara de poucos amigos, de paletó surrado, que dizia ser da Igreja de Jesus Redentor e Salvador. Alienado de tudo, livro sagrado aberto, parecia sorrir. Levantava a cabeça, balbuciava palavras incompreensíveis e, segundos depois, mergulhava outra vez nos escritos do antigo testamento. Como sei o que ele estava lendo? Não sei, mas imagino.

Logo à frente do pastor —vamos chamá-lo assim —, duas garotas conversavam, gargalhavam, falavam ao mesmo tempo. Os assuntos eram todos e não guardavam uma ordem linear. Eram capazes de ficar em silêncio por um instante para retomar com vitalidade os assuntos anteriores e pautar outros novos no instante seguinte. Não traziam livros ou cadernos. Embora concentradas uma na outra, reparavam em tudo o que acontecia ao redor. De cabelos levemente desgrenhados, olhos cansados, roupas comuns, elas só podiam ser funcionárias do comércio.

Ao lado do motorista, sempre de frente para os passageiros e de costas para o para-brisas do veículo, havia um policial. Há, pelo menos, dois anos era um assíduo companheiro de viagem deste grupo dessemelhante do último horário. A primeira vez que entrou no Ouro Negro, era esguio, barbudo, desleixado, desatento, de ombros caídos. A caserna foi aos poucos corrompendo suas estruturas, robotizando-o, tornando-o ensimesmado, rijo e desalmado. A farda e a arma o deixava mais imponente… e desconfiado. O que não dá para negar é que sua presença deixava o ambiente com aquela sensação de segurança capaz de tranquilizar a todos.

O policial e o pastor tinham algo em comum. Consideravam-se diferentes, de outro mundo, muito melhores que os demais mortais. A semelhança parava por aí. Cultuavam diferentes deidades. Flertavam com a morte, diversamente.

Com vários assentos vazios, Douglas ia trocando de lugares. Conversava com um e com outro, sucessivamente. Era um sujeito solícito e carismático. Sabia da história da maioria dos passageiros e estes conheciam a sua. Fazia questão de contá-la e recontá-la repetidas vezes. Em suma, era um alcoólatra em recuperação. Sempre portava mais de um livro. Um romance e algum livro de Bill Wilson, fundador dos Alcoólicos Anônimos. Seu maior prazer era estimular um bom debate que poderia durar dias a fio. Seu desencanto, que falassem mal do Corinthians, clube do coração. Apesar dos livros, não era estudante. Não, do ponto de vista formal. Era um autodidata e observador meticuloso.

O motorista era bipolar. Na mesma noite em que era todo sorriso podia se irritar profundamente com algum passageiro a ponto de o expulsar do “seu carro”. Sempre estava de ray-ban falso, pendurado no bolso da camisa ou descansando nos cabelos grisalhos.

Insosso, o cobrador era daqueles que acordavam e dormiam sem pensar no outro dia. Achava que a vida era assim mesmo, com afortunados e desgraçados. Nada o comovia, nada o animava. Sem sonhos, era um zumbi, um morto-vivo. Um sujeito incapaz de explicar qualquer atitude própria, que age por vingança, sem se dar conta disso. Vingança contra a sociedade que o exclui e que o impede de viver aquela vida de galã de novela das oito, de carro importado, cercado por mulheres, agraciadas nas formas, mas não necessariamente no conteúdo, em ilhas paradisíacas, em iates e Johnnie Walkers a la vontê.

A vida era muito injusta. Douglas diria que “Ao desconcerto do mundo”, de Camões, era o resumo da ópera para explicar a leseira do cobrador. Talvez lhe faltasse um pouco de Nietzsche, bem interpretado.

O fato é que a tranquilidade da viagem, naquela noite, estava prestes a ser rompida. Daqui a pouco, todos os passageiros tornar-se-iam vítimas de um assalto atrapalhado, à mão armada.

O meliante entrou no ônibus e parou entre o cobrador, o motorista e o policial. Douglas percebeu o que estaria por vir e tratou de ficar quieto, bem pertinho do pastor que não piscava os olhos, concentrado nos Provérbios. O ladrão olhou para todos para ver se havia algum conhecido antes de anunciar o assalto. A um passo e de costas para o policial, se dirigiu ao cobrador e pediu todo o dinheiro disponível. O que se viu e ouviu a seguir foi uma sequência de eventos descontrolados. Um tiro, que ensurdeceu a todos. Gritos, perseguição, uma correria louca no lado de fora e a volta do policial ao ônibus.

— Vamos, vamos —ordenou ao motorista. Cravejado de perguntas, o policial tranquilizou a todos. Não havia mortos ou feridos. Estava tudo bem, disse com ar aflito e perceptivelmente abalado com toda a situação.

Douglas, no entanto, tinha sua própria versão. Ele viu quando o policial, sem farda nesta noite, afastou-se devagar, ficou na ponta dos pés para ter a distância adequada para disparar, à distância de um braço, contra o assaltante. Era impossível errar o tiro. A essa altura o bandido já devia estar morto, pensava.

Mas a manchete local da segunda-feira surpreendeu os passageiros do último “busão”, com dois faltantes, o policial e o pastor:

Músico da Igreja de Jesus Redentor e Salvador é atingido por bala perdida quando retornava do trabalho. O projétil atravessou a boca do jovem que será submetido a uma cirurgia para recuperação de cordas vocais avariadas, dizia o jornal.

A colônia

Acumulei ao longo da vida muitos inimigos. A superação dos obstáculos naturais sempre me foram inatas. As vitórias diárias de todas as adversidades, naturais e sobrenaturais me fortaleceram.

A brevidade da vida me ensinou, desde muito cedo, a não perder tempo, a me manter em meu devido lugar e a aproveitar todas as oportunidades como se fossem a última e a primeira.

Já perceberam como viver é perigoso demais?

Muito jovem ainda, ouvia dos mais velhos da colônia sobre o cuidado com a comida e a bebida. Eles só comiam ou bebiam algo, após alguém experimentar antes. Ficavam ali, olhando, observando as reações do provador aleatório até terem certeza de não haver veneno.

Alertavam eles, sobre os perigos dos caminhos entre a lida e a volta para casa. Era preciso observar atentamente qualquer alteração, mesmo a menor que fosse. Era uma questão de vida ou morte.

Quase que por instinto seguia à risca as sábias instruções.

Havia convenções e seminários, à nossa maneira, quando as estatísticas apontavam para um aumento generalizado de acidentes. Era preciso entender os motivos e propor soluções para evitar a incidência.

Guerras entre as colônias eram corriqueiras. Os motivos, os mais variados. Poderia ser uma simples disputa territorial ou vingança mesmo motivada por crimes contra indivíduos deste ou daquele domínio.

Todas as guerras tem motivos vis e, quase sempre, todos perdem. Não sei em outras dimensões, em outros mundos desconhecidos, mas, por aqui, guerrear é perder minutos preciosos de regozijo.

Não seria este o sentido da vida, a busca da felicidade?

Trabalhava à noite e sempre sozinho. Precisava ser rápido, identificar locais seguros onde arranjar comida, a suma felicidade, levar um pouco para minha mãe, comer o mais que pudesse para garantir a energia necessária para as intempéries do retorno.

Quando digo que viver é perigoso demais, não me refiro a uma ideia cientificamente experimentada, comprovada em laboratório que simula condições reais, mas da vida como ela é. Me refiro àquele instante em que a luz se apaga sem nos darmos conta do por quê. No átimo em que um último pensamento nos ocorre: como aconteceu, o que virá depois, há um depois?

Na colônia era comum desaparecimentos súbitos. Os que chegavam em casa avariados estavam fadados ao óbito. Há quem diga que a punição era canibal.

Que tipo de sociedade é tão implacável com os fracassados e desvalidos?

Não sou afeito a reflexões diuturnas, minha natureza não permitiria tal regalo. Se o faço agora é porque estou na encruzilhada entre a resignação e a luta insana pela liberdade.

Meu máximo esforço me desfalece. Começo a ter visões. Será um sonho a aproximação de algoz de proporções tão descomunais? A que colônia pertence esta espécie de animal que se aproxima devagar com um misto de curiosidade e medo, sem contudo, parecer agressivo? Meus ouvidos me enganam ou ouço a canção “Lucy in the Sky with Diamonds”?

Tenho pés e mãos amalgamados entre si. Os mais velhos da colônia nunca alertaram sobre este líquido viscoso sobre o qual pus os meus pés, sem nunca mais poder sair dele. Os guinchos a plenos pulmões são incontroláveis e involuntários. O corpo reage em vão. Um jato de adrenalina é a tentativa derradeira.

Sem chão, embora preso nele, em meio à sensação de embriaguez, de flutuação e desequilíbrio, pude notar olhos enormes a me fitar. Pareciam me oferecer consolo. Me falavam das angústias dessa espécie e de outras. Que olhos tristes tinham! Eram infelizes, sabia. Talvez vivessem muito mais tempo. Talvez, somente eles tenham a noção exata sobre o conceito de tempo cronológico, khrónos. O nosso tempo está mais para o kairós e o aíon, tempo indeterminado, sagrado e eterno. O tempo da natureza, com os respectivos ciclos da vida.

A felicidade que, entre nós, se limitava à busca diária de comida, nessa espécie, parecia potencialmente variada. Com tempo de sobra, poderiam se dedicar a pensamentos elevados acerca da vida, ao pensamento filosófico, ao ócio criativo, ao predomínio intelectual e altruísta diante de todas as espécies existentes, tornando a natureza equilibrada e divina. Poderiam se dedicar ao amor.

Aceito o meu destino pelas mãos desse infeliz da espécie humana.