Verdades, mentiras e falsas percepções da realidade

Perto de onde trabalho tem um estabelecimento comercial que me favorece na hora em que o desespero por café e a fome me consomem. O local, por fora, é muito chamativo. Por dentro, não é lá essas coisas. Mais parece um boteco mal frequentado e sujo.

Era um dia seco e claro, desses em que o cheiro de tudo incomoda, em que a respiração fica difícil e o sufoco faz pensar que um colapso é iminente. Cheguei e pedi um café de bule ―não sei como as pessoas conseguem tomar esses cafés de máquinas que a gente fica lembrando dele o resto do dia. Forte demais. Na falta do de bule, sempre peço um “carioca”. Ainda assim é difícil de engolir. Assim como foi difícil engolir o papo de balcão naquele dia.

O sujeito do lado de dentro, aparentemente, o proprietário, falava com um sujeito do lado de fora. E concordavam em tudo e se complementavam, repetiam argumentos, comemoravam vitórias e lamentavam derrotas. Resolvi demorar um pouco mais que o normal.

―Esse STF precisa ser fechado ― dizia o homem grande com tatuagem no braço e jaqueta de motociclista de motoclube. 

―Tudo safado. Viu aquele lá, o tal do Tófolli, o Gilmar e o carequinha lá, que parece o kojack? ―emendava o velho negro de chapéu de palha na cabeça.

―Eu não queria que o Lula tivesse preso, não queria mesmo. Queria é que ele devolvesse os bilhões que ele roubou. Com esse dinheiro o Brasil poderia ser muito diferente.

― Viu o avião do Lulinha? Só existem dois daquele no mundo e ele comprou os dois. E a Ferrari amarela dele, viu? O cara tem dinheiro que não sabe o que fazer com ele. Tudo roubado da Petrobras. Ele não tem só a Friboi não, tem muito mais. Coisas que nunca vamos saber. Um dos mais ricos do mundo esse Lulinha. Laranja do pai, isso sim. Esse negócio do sítio dele e do triplex é balela, é fichinha.

― O presidente não consegue fazer nada. Uma hora é o STF, outra hora é a Globo. Essa mídia está toda contra o “home” que é a nossa salvação, coitado. Levou até uma facada porque queria livrar o Brasil dessa corrupção. Um homem abençoado!

―E aquele Mourão? Um golpista, safado. Se o presidente não tomar cuidado, sei não… Justo agora que o presidente assinou lá o remédio para todo mundo. Um remédio caro que pode ir e pegar em qualquer postinho. Remédio de graça para todo mundo, você viu? Como é bom esse homem!

― Pra mim tinha que fuzilar todos esses caras do contra. Fechar esse Congresso, o STF. Tem que começar do zero.

Nesse ponto, me intrometi na conversa. 

―Mas vocês não acham que fazer isso é perigoso demais? Além disso, a quem interessa um caos instalado em um país como o nosso com tantos problemas sociais e políticos? Vejam o desemprego, por exemplo, com níveis alarmantes! E esse filme a gente já viu em 64 na ditadura militar ―argumentei.

―Que ditadura o quê?! Desemprego?! Foi o PT que acabou com tudo, deixou o país na miséria, junto com esse PMDB. Tudo ladrão! Comunista, nunca mais! Tem que proteger as nossas famílias. No meu tempo a gente cantava o Hino Nacional na escola, não tinha essa pouca-vergonha que a gente vê por aí. Eu votei no Bolsonaro porque ele é honesto, novo na política e não vai se juntar com essa gente corrupta do Congresso. Ditadura? Ah, sabe de nada inocente! Pessoas de bem, não tiveram nenhum problema depois da revolução. Agora, os bandidos, sim. Os comunistas, sim.

― Novo na política? ―perguntei, já nervoso. ―Mas ele foi deputado por 28 anos. Como pode ser novo? Em tantos anos, jamais apresentou um projeto importante. E sobre a ditadura, já viu aquele documentário: “O dia que durou 21 anos”? O documentário mostra claramente que os Estados Unidos estiveram por trás de todos os eventos que antecederam o golpe militar de 64 (e estão de novo por trás dos militares que estão no governo. Planejaram essa história toda do impeachment e da prisão do Lula). O Moro foi instruído pelos americanos, esse juizinho lacaio dos norte-americanos. O Deltan, do Power Point, também. E aquele povo do TRF4, tudo envolvido. 

“Os americanos planejaram todos os passos da ditadura militar desde 62. Nesse tempo, em cada esquina tinha um agente americano. Ensinaram os agentes do DOI-CODI a torturar e matar. E tudo isso, por uma questão geopolítica, por interesse na Amazônia e nas nossas reservas. Por causa da guerra-fria. Está tudo no filme e também no livro “Brasil Nunca Mais”. O Zuenir Ventura escreveu sobre isso, em “1968, o ano que não terminou”. E tem mais um tantão de filmes, documentários e livros sobre o tema. Sem contar os zilhões de estudos acadêmicos a respeito.”

“E esse Bolsonaro passa o tempo todo no Twitter escrevendo abobrinha. Os poucos ministros que pensam ficam desesperados cada vez que o presidente abre a boca. Ele permite que o vereador, filho dele, se envolva em polêmicas o tempo todo. Aliás, o “Carluxo” é o primeiro vereador federal que se tem notícia.”

“E o Queiroz? Cadê o Queiroz? E o Laranjal do PSL, de Pernambuco e de Minas Gerais? E os funcionários fantasmas da famiglia inteira? E os cortes na Educação, pra que isso? E essa reforma da previdência de um trilhão? Vai fazer o quê com esse dinheiro, pagar juros? E o desmatamento, os venenos cancerígenos liberados, as bancadas da bala, da bíblia e rural e suas exigências, um verdadeiro poço sem fundo?”

“O Centrão vai detonar Bolsonaro, vocês vão ver. Escrevam isso. E o Maia não vai ajudar, não. Ele quer ser presidente. Sonha com isso todo dia. O Alcolumbre é despreparado. É outro aliado do governo com uma ficha corrida maior que a do Cunha.”

“Já estão falando de impeachment do Bolsonaro e isso não demora, viu! Presidente ruim, sem projeto. Não levou facada nenhuma. Ele estava com câncer e precisava fazer uma cirurgia. Aproveitou que não queria ir aos debates, porque é mais burro que uma porta e inventou essa história em conluio com a Polícia Federal, com os médicos, com o próprio inocente útil que foi treinado para encenar a tal facada. Quem está pagando os advogados desse Adélio, que tem Bispo no nome, mas não é nada santo?”

“Bolsonaro fica falando de família, mas é separado. Pegou uma mais novinha. Lembram da fala dele sobre o apartamento de Brasília? “Mantenho o apartamento para comer gente”, falou sem pestanejar. Vejam se isso é coisa que se fale?”

“Tudo que o presidente faz é para benefício próprio. Viu a história das multas de trânsito e dos radares? Agora quer liberar geral. E as multas ambientais? Partiu pra cima do pobre homem que aplicou uma multa nele por pescar em local proibido. E o Queiroz estava com ele, mas a Polícia Federal, o Ministério Público, ninguém consegue encontrar esse cara, que dizem ser miliciano. Que era o gestor financeiro do filho senador, na época em que o Flávio era deputado estadual do Rio.”

“E o outro filho, deputado federal? Só fica viajando, colocando boné do Trump e falando asneiras contra mulheres, negros, gays e toda a gente pobre deste país. Viu o que ele disse sobre fechar o Supremo com um cabo e um soldado, que nem precisava de jipe?”

“E a seita olavista que tomou de assalto o Ministério das Relações Exteriores e o MEC?”

“Esse governo nem precisa de oposição. É uma briga lascada entre eles. Militares, olavistas e a famiglia“.

“Enquanto isso, a mídia está em uma posição desconfortável. Apoiou o cara e se arrependeu; apoia a reforma do trilhão, liberal que é, em sua essência, mas detona o presidente diuturnamente. A Folha, o Estadão e a Globo descem a madeira no cara todo dia. Fechado com ele, o Bispo Macedo, o Datena e o Silvio Santos. A Jovem Pan é golpista de carteirinha, mas já perdeu a paciência. O Reinaldo Azevedo, então, nem se fala. A RedeTV também está com ele, esperando algum, uma vez que ele declarou guerra contra a Globo”.

Nesse ponto, meus interlocutores estavam calados. Um limpando o balcão com um pano imundo, o outro, sentado coçando a cabeça e a meia furada. Perguntei quanto devia. De cara fechada e mordendo o beiço, o homem grande cobrou o café. Desejei um bom dia, sem respostas e saí. 

Quase na rua pude ouvir: “Petralha! Comunista! Não sei onde estava com a cabeça que não enfiei um soco na cara dele. Onde se viu uma coisa dessas?”

LC

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